domingo, 9 de dezembro de 2018
Um Natal convulsivo
“UM NATAL CONVULSIVO”
(Extraído do “MEU DIÁRIO”, texto escrito em 20/06/1968, encontrava-me por 1 ano e 6 meses, numa ilha do Pantanal do Mato Grosso, Destacamento Militar do Exército Brasileiro – Bela Vista do Norte- Cáceres MT), aos meus 19 anos)
“São 10:50 horas da manhã, o dia se apresenta com temperatura propensa ao frio. Estive lendo um livro de telepatia e fiquei impressionado com certos fatos originários deste estudo. Há dias estive pensando em fazer deste diário, um registro de fatos decorridos na minha infância, alguns com passagens melancólicas, outras cômicas. Vou tentar...e a medida que for recordando levarei até este livro, para o registro do mesmo. Darei um título ao fato, para dar uma idéia inicial do que se tratará, o pequeno “conto”. Hoje relatarei um caso que foi motivo para muita chacota, durante longo tempo, entre os amigos, Ocorreu, se não me falha à memória em 1962 ou 1963.”
Na antevéspera daquele natal, como no dos anos anteriores, lembrei-me do nosso tradicional “pinheiro” das festas de nascimento do Criador. Era costume que trouxéssemos colhidos dos campos, que circunvizinhavam a cidade de Lages. Teria eu, na ocasião 13 para 14 anos, entretanto dado à pouca idade, já queria me mostrar adulto. (Hábito de quase todo adolescente).
Reunindo-me aos amigos do bairro, com quem mantinha mais amizade: Nonô (João Claudionor Matos Almeida) e Ênio Ribeiro, este filho adotivo de tio Zéca, irmão de minha mãe, meu primo, parceiro de muitos folguedos. Tratamos de providenciar os apetrechos necessários à caminhada, já que os campos onde iríamos, distavam uns bons quilômetros do nosso bairro das Casas Populares. Aprontamos um facão-de-mato, já enferrujado, que tomamos emprestado, de uma vizinha do Nonô! Cada um dos três munidos de funda e bocós cheios de pedras, rumamos para o campo onde ficava o famoso “Pocinho dos Escoteiros” (Coxilha Rica). Após uma hora aproximadamente, dávamos entrada secretamente no campo alheio, com o firme intento, de obter cada qual, o seu pinheiro, que embelezaria, a sala de nossas casas até o dia 6 de janeiro. (Dia de Reis). Lógico que tomávamos o máximo de cautela, para que não fôssemos vistos ou ouvidos, por alguns dos guardas, que nesta época do ano, mantém bem aberto seus olhos, para qualquer anormalidade no terreno. É um crime sujeito a processo judiciário (hoje sei), o corte do pinheiro, já que esta árvore, é valor muito alto nos mercados madeiríferos da região.
Nossa procura foi curta, pois logo cada qual, encontrava-se com seu pinheiro, cortado e arrastando-o pela estrada do rio Guará. Excitadamente caminhávamos vangloriando-se no feito. Não recordo quem de nós, lembrou que deveríamos, já que ali estávamos, levar mais alguns pinheirinhos, para presentear aos vizinhos, amigos, em nosso bairro. Entusiasmados com o primeiro feito, sem consequências, deixamos o primo Ênio, na porteira de entrada da fazenda em que, se situava uma Companhia do 2º Batalhão Rodoviário e nos encaminhamos para o alto de uma colina, sabedores de que lá, depararíamos com bonitos exemplares de “árvore de natal”. De fato, não nos foi difícil, localizar o que procurávamos...e pouco depois descíamos em direção à porteira, lá juntando-se ao Ênio, empreenderíamos o regresso para casa.
Já próximo à porteira, quando nos avizinhávamos de um pequeno capão de mato, eis que surgiram dois cavaleiros, montados em cavalos muito resistentes:
Eles : --- Olá Moçada ! É prá vender os pinheiros ?
Nonô com ares de desconfiança respondeu:
--- Não Senhor!
Eles: ---Mas que pena..., então teremos que ir cortar os nossos, não é mesmo Júlio?
Falou com um homem mulato, de forte porte e que dado a sua aparência severa, já estava me atemorizando.
O outro, branco, denotava certa superioridade, disse:
---Pois é rapaziada, vocês seguirão conosco, até a sede da fazenda e explicarão ao proprietário o porquê destes cortes de pinheiros.
Não havia alternativa, os mesmos eram fortes e muito bem armados. De nada adiantaria correr, pois logo seríamos alcançados pelos cavalos. Creio que pelo menos em mim, não havia pensamento de fuga, pois era por demais, correr o risco de ganhar um tiro nas costas.
Após a vinda do Ênio, que veio forçado pelo mulato, seguimos por estrada desconhecida, margem esquerda do rio Caveiras, com destino à sede da Fazenda. No caminho fomos alvos de piadas maldosas dos nossos detentores. O facão-de-mato, que foi exigido pelos mesmos, trazia no cabo quebrado, pedaços de tecidos que o envolviam para amaciá-lo no manejo, e evitar calos nas mãos. Sendo que um, era de cor prêta.
Falou o mulato:
---Veja Júlio, eles trouxeram até pano preto, parece que já estavam prevendo que suas famílias irão ficar de luto!
---Basta que amarremos uma pedra no pescoço e lançamos no Rio Caveiras. Afinal ninguém poderá culpar-nos, não é mesmo ?
Minhas pernas tremiam vertiginosamente, creio que o mesmo ocorria com os outros.
Recordo que um pensamento veio-me à mente: “havia comungado no último domingo, será que no Nonô e o Ênio, também estariam preparados para morrer ?”
Na minha infantilidade, não previa que o corte de pinheiros, em terreno alheio, por si só, já era um pecado enorme. Deduzindo-se que, desta forma, não poderia ir para o céu. Pois era o que mais me preocupava na época. A idéia cristã, foi muito bem incutida sobre mim. Fiz curso primário em colégio dirigido por freiras.
Prosseguindo na “viagem forçada”, passávamos pela Companhia do 2º Batalhão Rodoviário, que era incumbida de um trecho de terraplanagem, para a futura estrada de ferro que ligará Lages à Caxias, no Rio Grande do Sul.
Mais uma vez fomos motivo para troça. Uma senhora, provavelmente esposa de algum operário, dirigindo-se ao mulato, interrogou:
--- O Senhor não vende estes pinheirinhos moço ?
Mulato: ---Oh ! Minha Senhora, quem está vendendo estas árvores não sou eu e sim estes rapazes...
Mostrou-nos, indicando com o rêlho, que já havia “funcionado” às costas de Ênio, porque o mesmo tentara atrasar-se e escapulir.
A mulher, ainda de nada desconfiando, repetiu a pergunta para nós. Nossa resposta foi um silêncio e olhar de súplica para que nos livrasse dos cavaleiros.
Ela parece ter compreendido, algo, calou-se. Nós prosseguimos a caminhada sendo observados por todos os habitantes do vilarejo.
Cabisbaixos, não ousávamos olhar para os curiosos.
Após uma marcha que parecia para a eternidade, por fim avistamos o final da jornada.
Na porta da casa, um senhor mal-encarado, ouviu com maldosa paciência, a narrativa do corte dos pinheiros.
Com olhar furioso interrogou-nos :
---Onde vocês moram ?
Mentiu Nonô: ---numa companhia do Batalhão “prá lá” do bairro Coral.
---É muito longe, senão eu levaria vocês três amarrados , para que seus pais, fossem processados pelo crime de invasão de terras alheias!
---Dou-lhes 10 minutos, para saírem de minhas terras, após este tempo, sairei em meu cavalo e se ainda, os encontrar dentro dos limites da fazenda, dar-lhes-ei tamanha surra de chicote, que por muito tempo lembrarão deste roubo de árvores !
Dez minutos não daria para percorrer à terça parte do caminho, já que leváramos quase hora e meia de ida.
Nonô, calmo e com o olhar mais ingênuo deste mundo perguntou ?
---“Sêo !! O senhor deixa, a gente, levar os pinheiros ? Pois já está cortados mesmo !
---Raspem-se daqui, cambadas de sem-vergonhas! Ladrões Miseráveis !
Antes do homem terminar de falar, eu já corria a uns 50 metros, no máximo de velocidade que davam minhas pernas !
Cansados e já sem fôlego, continuávamos a correr, desesperadamente. Nonô então, sugeriu que fôssemos pelo mato e não pela estrada, pois no caso do homem vir com cavalo, não nos encontraria.
De fato, pouco depois passava pela estrada, com firme intuito de nos alcançar.
Cautelosamente mais tarde saíamos dos limites da fazenda, um pouco acima da ponte do Rio Caveiras, estrada da Coxilha Rica.
Já mais calmos, regressávamos comentando o ocorrido e até algum, já rindo-se do ocorrido.
Levávamos nossas fundas e algumas pedras no bocó. De vez em quando atirávamos sobre alguns passarinhos.
Nonô, aproximando-se de uma macieira à beira da estrada, tentou acertar uma pelotada, num “chopim” pousado na macieira. Errou...e a pedra atirada com força, foi atingir uma casa próxima, caindo sobre o telhado de zinco, ocasionando um barulho infernal. Imediatamente saiu da casa, o seu proprietário e aos gritos disse :
---Ahh ! Seus moleques, por isto que nestes últimos dias, tem aparecido galinhas de asas quebradas!
Eu e Ênio, corríamos o máximo que dava, mas para nossa infelicidade, o homem montou um cavalo e disparou atrás de nós.
Nonô, havia cruzado à estrada e se internado nos terrenos da Chácara das Freiras, terreno que fica do outro lado da estrada de que nos encontrávamos.
Rapidamente passei por uma cerca de arame farpado, ocasionando rasgões na roupa.
Ênio embrenhara-se em um banhado, escondendo-se por detrás de umas moitas de macega.
Após passado à cerca , aguardei à chegada do homem, é que me encontrava no próprio terreno do proprietário zangado, que não tardou em se aproximar dizendo:
---“Piá, foi você quem atirou a pedra?
Eu: Não Senhor !
Eu: - aquele piá que está gritando lá naquele morro!
De fato Nonô, surgira no alto de uma elevação e gritava provocando o homem.
Enquanto isto, os cachorros deste senhor, localizaram o Ênio e foi com custo que conseguiu acalmá-los, para que o Ênio não fosse mordido.
Zangado, o cavaleiro tentou agarrar ao Nonô, mas foi impossível, o mesmo correra e transpusera o riacho Ponte-Grande, sendo impossível agarrá-lo.
Eu e Ênio, aproveitando a ocasião, corremos e escapulimos e para grande alívio, não fomos seguidos. Por volta das 16:30 horas, chegávamos em casa, cansados e abatidos.
Quase umas duas semanas depois, ainda saía à rua, com medo de ser reconhecido.
Foi uma lição que aprendi. Nunca mais voltamos, à campo algum, para cortar “Pinheiro de Natal” !
Bela Vista do Norte - Cáceres MT - 20 de Junho de 1968 - 5a feira - Adilson Tadeu Machado 3º Sargento RT - QRE - Exército Brasileiro - 2º Batalhão de Fronteira.
Texto do Dr. ADILSON TADEU MACHADO